Saturday, June 24, 2006

Quando o estupro virou sorte

Intrigante e instigante são as duas palavras que melhor definem o enredo de Sorte: um caso de estupro, mais recente livro de Alice Sebold.
Ao deparar com ele na prateleira da livraria, talvez venha a falsa impressão de ser mais um dos inúmeros volumes de auto-ajuda que o mercado editorial estadunidense despeja no mercado brasileiro todos os anos. É daqueles livros que, por sorte (perdão pelo trocadilho, mas foi impossível resistir), surpreendem. Você abre o volume achando que é mais uma daquelas novelinhas “meia-boca” e, quando percebe, foi fisgado pela prosa suave e marcante de Alice Sebold.
O assunto não é dos mais comuns e com esse título até se pode pensar na crise vivida pelo mercado de virgindades nos EUA, coitadinhos. “Nossa, o mercado de virgindade deve estar complicado por lá, já há até livro que considere estupro um golpe de sorte!”. Deixando as infâmias de lado...
A autora repete aqui a fórmula usada em seu livro anterior Uma Vida Interrompida (Editora Ediouro), ao tratar um assunto polêmico sem a visão geralmente adotada. Subverte o lugar-comum. Com um enredo constituído em flash-back, Alice mostra impacto e sangue-frio em seu relato, além de não aderir ao estilo moralista bastante presente na literatura americana.
Constrói um texto atraente e de linguagem simples, de leitura fácil, quase como quem conversa com o leitor, envolvendo-o na história, sem privá-lo de nenhum momento sequer, transformando-o quase que em personagem, e fazendo com que ele não desgrude os olhos das páginas.
O leitor tem diante dos olhos um relato que não se constitui exatamente em autobiografia, mas conta os caminhos percorridos pela vida de uma pessoa após sofrer um estupro, no caso, a própria Alice. Uma amostra do efeito devastador que o fato pode causar. Alice descreve fatos marcantes de sua vida pós-estupro e as inúmeras tentativas de retomar a rotina, de voltar a se sentir uma pessoa normal. A tentativa incansável de remover a mácula deixada pela violação.
Sorte consegue se manter primorosamente no tênue limite entre ficção e biografia. Dona de uma ironia fina, a autora imprime a seu texto um sarcasmo formidável, faz, assim, com que o improvável aconteça: a presença do humor dentro do texto.
Um dos maiores prodígios de Alice Sebold está no fato de falar do próprio estupro sem aquele tom professoral ou sensacionalista que é comumente adotado para o relato de casos semelhantes. Sem aquilo de “oh, sintam peninha de mim, pois fui violentamente estuprada”. Ela expressa uma certa naturalidade diante do fato, o que enriquece ainda mais o relato, pois ele se despe do tom aflitivo.

“No Túnel onde fui estuprada, um túnel que antes era entrada subterrânea de um anfiteatro, de onde atores emergiam debaixo dos assentos do público, uma menina havia sido assassinada e esquartejada. Quem me contou essa história foi a polícia. Em comparação com ela, disseram, eu tive sorte” p.15.


O título, Sorte: um caso de estupro, já entrega uma narrativa sem muitas cerimônias e cheia de ironias cunhadas pela autora, fato que mostra ao leitor que a idéia não é passar nenhuma lição de moral. Ao contrário, o envolvimento com a história demonstrado pela autora acaba por sensibilizar o leitor na medida certa.
Sem precisar apelar para o sensacionalismo ou para um distanciamento do fato narrado, Alice conduz o leitor como se ele estivesse presente na consciência da personagem, como se fora seu confidente íntimo.
A autora recorre a uma linguagem simples, sem rebuscamentos ou erudições desnecessárias, faz uma narrativa sem muitas delongas. Ela tece sua história partindo do ponto em que foi abordada por seu agressor, passando pelas agruras de registrar queixa na delegacia e de comunicar sua família, passa pelo preconceito dos colegas de faculdade e o olhar de espanto/ medo/ asco das demais pessoas, e ainda passa pela descoberta de pessoas com histórias semelhantes a sua, mas que pelo medo da reação da opinião pública escondem seus casos de estupro como se assim eles jamais tivessem acontecido.
A forte presença de diálogos confere dinamismo e movimento, mais realidade e faz com que se tenha diante dos olhos a reconstrução de cada uma das cenas descritas com riqueza de detalhes e sensações.

“Dentro do túnel, onde garrafas de cerveja quebradas, folhas velhas e outras coisas ainda indistintas coalhavam o chão, eu entrei em comunhão com aquele homem. Ele tinha minha vida nas mãos. Tolo é quem diz que prefere lutar até morrer a ser estuprado. Eu preferiria ser estuprada mil vezes. Você faz o que precisa fazer” p.18.

Sorte: um caso de estupro é um livro que instiga e intriga. Daqueles que se lê com curiosidade e prazer, seguindo página a página os rumos que a trama vai tomar. Leitura gostosa e enredo brilhante. Simplesmente excelente!




SERVIÇO
Sorte: um caso de estupro
Autora: Alice Sebold
Editora: Ediouro
Preço: R$ 16,00
288 páginas

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